top of page
WhatsApp Image 2020-11-22 at 23.53.34.jp

Crucifixo em viela de Paraisópolis, onde 9 morreram pisoteados durante ação da PM em um baile funk. MIGUEL SCHINCARIOL / AFP

Lucas Rodrigues

São Paulo - 22 NOV 2020 - 00:00 BRT

Até seria mais uma madrugada de sucesso para os jovens e comerciantes que se aglomeraram na Rua Ernest Renan, no chamado baile da 17 (mais conhecido pela sigla "DZ7") em que o número vem de um bar, o 17 Rei da Batida, muito conhecido na região onde abrigava um pagode famoso aos domingos. Hoje o baile ocorre a quase uma década, de quarta a domingo, reunindo nos fins de semana não só moradores do bairro, mas também ‘’caravanas’’ de outros locais da capital. Aqui todos são bem recebidos, fica claro que acumulando a rotina exaustiva de trabalho, transporte público lotado e estudo, o fim de semana é religiosamente guardado para diversão. 

 

Não é raro você ver o pancadão começar na quinta-feira e só terminar no fim do final de semana. Sem muitas opções de lazer e equipamentos culturais, como o padrão das periferias da cidade, o destino da maioria dos jovens é sempre o mesmo nessa caminhada do fim de semana até um novo surgir. O alto consumo de bebidas alcoólicas e de drogas, segundo relatam os moradores, se destaca no meio de uma multidão de mais de 30 mil pessoas dependendo do dia. 

 

Mas no dia 1 de Dezembro, o “fluxo” se espalhou para demais ruas e vielas do entorno do bairro. Até a chegada da polícia, pelo que se sabe, a festa transcorria na normalidade. O descontrole da situação teve relação direta com o procedimento da PM, que fez com que os gritos dos jovens que estavam naquele local não fossem de alguma letra de música, não eram gritos de libertinagem entre os demais amigos e sim de repressão pelos fatos que aconteciam. De acordo com a PM, policiais da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) entraram na comunidade durante uma perseguição a homens armados fugindo em motocicletas. A versão oficial também comenta que os suspeitos atiraram contra os agentes. Moradores negam a versão oficial da Polícia Militar de que tiros tenham partido de uma moto e afirmam que os frequentadores, na verdade, foram encurralados pelos policiais nas demais ruas que acompanham as concentrações dos jovens no momento. Os suspeitos na motocicleta não foram encontrados. 

 

Conforme os primeiros registros sobre as mortes no 89º Distrito Policial (Portal do Morumbi), quando os policiais entraram na comunidade usaram “munições químicas” para dispersar o baile funk. Os frequentadores teriam atirado garrafas e latas nos PMs, o que teria iniciado a confusão.

 

Esse é mais um caso em que a violência exercida pelos órgãos repressores do Estado brasileiro contra trabalhadores, negros, moradores de periferias e favelas sintetizam uma imagem clara dos dias atuais, em que há um aumento do autoritarismo no país, a autorizar ações que intensificam a tensão entre os órgãos do Estado e as comunidades. 

 

A dispersão dita pelo poder público não é vista da mesma forma como vídeos dos próprios moradores nas redes sociais mostraram. Em alguns é mostrado PMs agredindo indiscriminadamente as pessoas que estavam no baile. Para muitos no local, não houve uma fatalidade, houve algo premeditado, uma espécie de armadilha. As vielas e todas as saídas das ruas estavam interditadas. Um sentimento apenas de traumatizar vidas, com uma motivação que até hoje não sabemos levando para os céus os jovens Gabriel dos Santos, 22 anos, Gustavo Cruz Xavier, 14, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Dennys Franca, 16, Mateus dos Santos Costa, 23, Eduardo da Silva, 21, Luara Victoria Oliveira, 18, e Gabriel Rogério de Moraes, 20 anos.

 

O domingo e a semana após a tragédia foram os mais dolorosos da comunidade, apenas uma palavra era reivindicada, justiça por esses jovens que nos deixaram da forma mais hedionda. Logo após, uma guerra de posicionamentos a favor e contra os bailes funks cresceu. Uma pena que essa discussão esteja sendo influente após a perda de vidas, de jovens que nem da comunidade eram, mostrando mais uma vez a realidade de que quem cresce em Paraisópolis sabe em que direção correr para salvar a pele da repressão policial, mas os visitantes, não conseguiram. 

 

O Baile da Dz7, como outros pancadões ou fluxos acontecem na maioria das periferias das cidades, são expressões em que a maioria dos jovens se sente “conectada’’ com os demais longe de uma sociedade que tanto as oprimem. É preciso entender, antes, a dinâmica dos bailes de favela. O baile não é a última opção de lazer de um local que não tem opção de lazer, como muita gente tenta retratar.

 

Conhecendo a comunidade 

 

Para entendermos toda essa repressão que um espaço sofre com vários preconceitos, devemos conhecer sobre como ela foi composta. Mesmo depois de anos, vários estudos apontam Paraisópolis como a segunda maior favela paulistana e a quinta maior do Brasil. Isso faz com que haja uma intensificação maior no quesito de investimento e sustentabilidade do local. 

 

Em entrevista concedida ao nosso portal, Gilson Rodrigues, considerado “Prefeito" de Paraisópolis, conta sobre a história da ocupação do local, a relação dos moradores com o bairro vizinho, o Morumbi, e a criminalização do funk.

 

Segundo ele a comunidade composta majoritariamente por uma população de trabalhadores provenientes do Nordeste, “minha família veio do nordeste, assim como a maioria das pessoas da comunidade, 85% são nordestinos ou filhos do mesmo. Já se faz (sic) 70 anos que eu e a minha família estamos aqui, viemos com um sonho de morar na cidade grande, onde as crianças teriam boa educação e os pais ficarem ricos. Minha mãe era surda e muda, teve 14 filhos e após ela morrer de câncer fomos todos dados na periferia. Nós não sonhamos que a nossa moradia seria ao lado de um córrego, passando diversas dificuldade”, diz. 

 

Gilson comenta que o crescimento da comunidade veio porque Paraisópolis fez parte de um loteamento para milionários que deu errado, por isso é um espaço extremamente grande, cheio de terrenos quem vem aumentando de acordo com os anos. “Muitos proprietários resolveram comprar algumas terras, mas nunca criaram nada naquele local, com o tempo houve a chegada do Palácio do governo, hospital de luxo foi erguido e o estádio do Morumbi. Então, muitos nordestinos vieram até a região, com isso à área verde do terreno foi se ocupando e concentrando cada vez mais cheio de casas” comentou.

 

O líder comunitário e organizador no quesito da união dos Moradores e do comércio de Paraisópolis diz que devido às dificuldades da “cidade grande” e o descaso dos governos, muitas famílias ficaram descrentes de um sonho onde as crianças teriam boa educação e os pais ficarem ricos. Isso fez com que Paraisópolis crescesse de forma desorganizada. 

 

Hoje Gilson diz que vê uma clara diferença entre o início, quando veio com sua família e irmãos para o que a comunidade está hoje, no quesito organização. Que não há como haver uma dispersão da população para sair do local, mostrando que Paraisópolis se consolidou como um grande bairro e que agora está tentando implementar, de fato, um bairro de verdade. “Posso te dizer agora então que a comunidade está crescendo fazendo parte de um bloco de líderes empreendedores sociais das 10 maiores favelas do Brasil, a G10, e nós acreditamos que a gente possa mostrar as boas iniciativas e o potencial que a favela tem para que essas oportunidades sejam alavancadas para um processo de informação”, comentou.

 

O baile funk ainda é uma “dor de cabeça” dentro e fora da comunidade

 

Não é porque em muitos aspectos a comunidade melhorou, que todos os problemas serão solucionados o mais rápido possível. É de se acreditar que esse sonho poderia se realizar mesmo Paraisópolis sendo uma das maiores favelas do Brasil. O funk e a festa cheia que ele trás estão cercados de controvérsia. Para muitos o local é recheado de desordem, com conteúdo de letra cheia de apelos ao tráfico, apologia ao crime e à pornografia. Esse pensamento por pessoas de fora do bairro, muitos moradores da rua e vielas onde o baile funk ecoa mostram uma dificuldade clara de conversa. Gilson comentou sobre o assunto e disse que com relação ao baile existem dois movimentos, o primeiro é dos vizinhos que sofrem bastante com o barulho e com tudo o que a festa pode criar em um aspecto negativo, mas ao mesmo tempo existe uma perspectiva positiva de comércio, geração de trabalho e renda que esses moradores também usufruem. 

 

Segundo o chamado prefeito de Paraisópolis, na região onde o baile está existe um problema concreto, por falta de estrutura para um série de benfeitorias que poderia melhorar tanto a condição de quem vem, quanto dos moradores. O baile não apresenta lideranças para organizar o fluxo, chega que quiser para se “divertir’’ e os traficantes, que concorrem por territórios, se empolgam com o fluxo de clientes em potencial e o poder público faz de pouco caso.

 

Segundo afirma Leonardo Martins, que cobre a área de segurança pública na rádio Jovem Pan, você não resolve baile funk com a segurança pública, “o funk já é algo que saiu da comunidade, então como a gente faz festa nas nossas casas, eles decidiram se juntar, cresceram e trouxeram sim problema para moradores do local. Então tem todo um problema a ser resolvido, mas mostra pelo menos que a falta de cultura e acesso tenham formado a criação desses bailes. (...)converso com policiais e a reclamação deles é a mesma, baile funk não é caso de polícia, você não resolve isso com bala de borracha e spray de pimenta”.         

                                                                                           

Em contraponto um dos maiores grupos que é contra a tal “baderna” dita pelos moradores são muitos conservadores ou integrantes da nossa segurança pública, o sargento aposentado Samuel do Lago, hoje candidato a Vereador do Estado de São Paulo comentou que se mostra bem contra como os bailes são realizados e diz que o silêncio urbano é algo grave que precisa ser respeitado, pois muitos trabalhadores se veem acuados por tanto crime realizado à mostra para todos. Foi claro ao dizer que a melodia do funk em si não é um problema, mas sim como ele está à mercê da lei. 

 

“Não só critico o funk, não podemos generalizar, hoje em dia o sertanejo também vem com melodias bem problemáticas, é um incentivo ao consumo desenfreado de bebidas alcoólicas onde as pessoas não entendem que vivemos em um pais onde acidentes de transito causados uso de álcool vem aumentado cada vez mais(...). Um dos problemas que nós enfrentamos hoje é o silencio urbano, o nosso programa psiu não funciona direito, não temos ninguém para acompanhar essas festas, como é realizada no carnaval.” afirma Sargento Lago, deixando claro que para a juventude da comunidade, a descontração é a maneira mais democrática de se divertir, mas que a quantidade de jovens sem total controle de um poder público deixa alguns moradores em um legítimo sofrimento.

  

Para entender um pouco mais sobre esse crescimento do baile, Gilson Rodrigues nos disse que se veio após a realização da novela I Love Paraisópolis, então isso reforçou a identidade do baile ser algo legal, com atores globais e outras personalidades vindo até o local. Assim se tornando símbolo de desejos e atraindo cada vez mais gente. Gilson também diz que da maioria dos fins de semana cerca de 90% das pessoas que estão na festa são de outras comunidades ou de bairros de classe média alta/baixa e que isso reforça o potencial da comunidade, seja para eventos ou segurança. 

 

Quando entrei em uma conversa em relação ao massacre acontecido no dia 01 de Dezembro, o prefeito da comunidade disse que o clima foi de extrema “derrota”. “Acredito que após o acontecimento, houve uma situação de revolta, a constatação que todos os mortos não eram moradores da comunidade demorou, então muita gente daqui considerava que era alguém próximo, só após a constatação de que eram moradores de fora, fez com que nos preocupassem bastante” diz. 

 

Gilson reiterou que ainda não existe um pós-tragédia e relatou como foi o impacto econômico após o fato. “Acho que não existe uma pós tragédia ainda, tudo isso continua a medida em que não se tem uma solução para o problema, que os culpados não foram condenados e que a comunidade durante esse período recebeu uma onda de informação positivas e negativas onde impactaram socialmente e economicamente” afirma Gilson. 

 

Porque o caso Paraisópolis teve tanta repercussão na mídia

 

As imagens da multidão de jovens correndo de forma desesperada diante do ataque da polícia militar de São Paulo correu o Brasil. Hoje, com a internet, as  imagens tem o poder de correr o mundo. O caso de Paraisópolis só nos mostrou por meio dos vídeos de moradores anônimos como foi a invasão da casa grande sobre a senzala, para reiterar o sadismo constitutivo da formação do Brasil na forma de racismo e genocídio. O saldo no fim foram nove jovens que tiveram suas vidas acabadas após uma ação sádica de uma corporação que deveria nos proteger. No meio disso algo chamou atenção de muitos foi a repercussão e a mobilização que essa tragédia causou. Fato é que precisamos entender que existem inúmeros casos que ocorrem todos os dias em diversas cidades, mas é claro que o número de mortos no ocorrido de 01 de Dezembro realçou ainda mais a grande repercussão. 

Segundo os jornalistas que cobrem a área de Segurança Pública, como Luis Adorno, Leonardo Martins e Arthur Stabile, que conseguem controlar e visualizar o número de views de seus textos, fica claro que o número de mortos influenciou na curiosidade de muitos a até conhecerem mais casos desses tipo.

 

“No caso de Paraisópolis, 31 PMs envolvidos estão soltos. Vale o questionamento: o que é repercussão? Eu prefiro uma repercussão que influencie na prática, para além disso, são outros tempos, a sociedade brasileira tem debatido coisas atualmente que não debatia no passado: o racismo, a violência policial, o machismo, entre outras questões. Entendo que Paraisópolis mobilizou muitas favelas no Brasil porque é debate público nos últimos anos o racismo e a violência policial” diz Adorno. 

 

Para o jornalista Arthur Stabile, repórter da Ponte Jornalismo, portal onde muitas vítimas podem realizar denúncia sobre abusos policiais, independente do número de mortos o site noticiaria o assunto com a mesma gravidade, que só por causa do número de mortes foi dada a devida seriedade e diz que as pessoas, principalmente de classes mais privilegiadas estão tendo um interesse em ler sobre esses casos e apoiar as causas. 

 

“Eu acredito que a proporção definiu muito qual o grau de cobertura que  deveria ser feita, se fosse nove ou uma morte a Ponte ia noticiar da mesma forma (...) empatia é a base do nosso trabalho na Ponte, por isso só depois de nove mortos a gente viu uma pequena sensibilidade por parte da imprensa” diz Stabile.

 

Um programa bem interessante que a Ponte tem para fortalecer a relação do site com a população é uma ideia de como essas pessoas podem colaborar, por isso foi criado uma plataforma onde muitas vezes vítimas de algum abuso de autoridade relatam os seus casos com provas por meio de vídeos, áudios ou demais depoimentos. Mas o jornalista deixa claro que o portal é cauteloso e pede muito cuidado as pessoas quando gravarem esses fatos”. 

 

“Na Ponte temos um muito grande cuidado quando recebemos vídeos de abordagem, não importa que quem esteja gravando seja a vítima ou morador escondido, então pedimos muita cautela para essas pessoas, entender a situação que está se tiver um mínimo de segurança filma, se não só o áudio, precisamos do fato para ser validado e darmos continuação em alguma história” finalizou o jornalista. 

 

Depois desses depoimentos só fica mais claro, como muitas vezes, notícias de abuso policial são tratadas com a maior superficialidade, é apenas aquele momento em que a maioria das pessoas sente “pena” ao ver vídeos de protestos pedindo justiça ou de algum familiar, chorando em cima do caixão. 

 

Particularmente acredito que a nossa profissão atualmente entendeu como se faz uma matéria com esses tipos de abordagens e aos pouco vem recebendo um devido crédito.

 

Agora basta percebermos quem quer olhar para o futuro ou continuar nesse jornalismo do passado, até porque obviamente a cultura do medo está nos programas televisivos que tratam sobre o mundo policial e toda espetacularização que a própria mídia faz sobre ela. Violência da audiência e o interesse da desgraça chama atenção hoje e sempre. 

 

 As investigações do caso e o que temos após um ano da tragédia

 

Após dois meses de investigações, o laudo oficial apontou que mortos foram pisoteados e morreram asfixiados. A Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo considerou legal a atuação dos policiais militares durante o baile. O documento aponta ainda que os agentes sequer praticaram infração militar, sugerindo assim o arquivamento do caso ao Tribunal da Justiça Militar, que solicitaram novas imagens e depoimentos para esclarecer quem são os organizadores do baile funk da DZ7. 

 

Quem solicitou esse novo inquérito foi o promotor Edson Corrêa Batista. Para ele, após as diligências e os demais laudos que mostram a morte em decorrência de asfixia mecânica, devido ao grande número de pessoas, os organizadores não identificados até agora podem ser responsabilizados por promover festas sem cumprir as leis municipais. 

 

“Necessariamente nesta questão, de fato, estabelecer responsabilidade, pois no primeiro momento a carga de responsabilidades vai toda aos PMs, se eles com a incursão na favela provocaram o encurralamento, assim criando a aglomeração de pessoas que no momento de pânico morreram por asfixia. Diante dessa aglomeração entendemos que também a responsabilidade dos organizadores do evento, quem são esses que convocam centenas de pessoas para aquele tipo de local” diz Corrêa. 

 

Para o promotor, a tônica da acusação é que aqueles policias militares ao procederem daquela forma, assumiram o risco da ocorrência daquele resultado, isso que é posto em debate e serão essas as questões que serão debatidas dentro do processo que passou por ele e será concluído pela promotora no Tribunal do Júri, no Ministério Público.

 

Quando perguntado se ele acreditava se o processo seria finalizado ainda esse ano, Edson disse que quando chegar à promotora o processo de finalização será bastante penoso, pois haverá diversos réus, recursos, então é algo que fica cansativo, mas ressaltou que as investigações realizadas em primeiro momento e depois as solicitadas pelo próprio foram rápidas. “As investigações sem dúvidas estão em vias de encerramento, pelo menos o processo vai ter, agora o desfecho do processo será bastante penoso, haverá diversos réus, recursos, então é algo cansativo. Vamos aguardar o Ministério Público, mas achei que as diligências do caso foram rápidas e até propus diligências aditivas” reforçou o promotor. 

 

 

Existem medidas para que aconteça um retrocesso na criminalização e um avanço na democracia?

 

O caso em Paraisópolis escancarou diversos problemas. Um deles a respeito de como a sociedade enxerga a periferia. Outro, sobre como é o treinamento da polícia para lidar com moradores de comunidades pobres. Digamos que o modelo brasileiro de policiamento é guiado por uma profecia que sempre se cumpre: a do negro criminoso. No Brasil, o fazer da polícia se orienta muito mais pelo conjunto de valores, conceitos, práticas, idade, cor, gírias, vestimenta, comportamentos e endereço pré-definidos passados dos policiais mais experientes aos iniciantes, do que por quaisquer protocolos.

 

 A criminalização da pobreza e a violência por parte do estado se mostraram ainda mais visíveis, mostrando que na maioria das vezes esses tais jovens mortos são tratados como degenerados, de uma sociedade preconceituosa e elitista, que exclui dos pobres da ascensão econômica por meio de restrição de oportunidades. 

 

É aí que entramos em uma discussão repleta de posicionamento, quando falamos de atuações da policia militar com os jovens da periferia, pois todos os dias essas condições favoráveis e desfavoráveis estão misturados no noticiário, infelizmente o lado dos criminosos é sempre o do favelado, do traficante, negro e pobre.

           

A explicação para isso é simples, segundo O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas. A entidade traçou um perfil dos assassinatos cometidos por policiais em 2018. Entre os mortos, 75,4% eram negros, 81,5% só possuíam o ensino fundamental, evidenciando o racismo e o preconceito de classe institucionais. 

 

Com esse resultado obtivemos outros dados. Um, de acordo com o Atlas da Violência 2020, as taxas de homicídios de negros aumentaram 11,5% no país durante os últimos dez anos enquanto as de não negros caíram 12,9%. Em 2018, por exemplo, para cada não negro assassinado, 2,7 negros foram mortos. Analogamente, em 2019, a taxa nacional de negros mortos pela polícia (4,2) foi mais que o dobro da taxa de brancos (1,5), como indica o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 

 

Um terceiro levantamento, produzido pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos aponta que, negros têm entre 2,4 vezes mais chances de serem presos em flagrante do que brancos. Embora os negros correspondam a 37% da população do estado e os brancos a 62%, as abordagens policiais não obedecem a essa proporcionalidade.  Ainda segundo o anuário, o efetivo das polícias é majoritariamente branco (53%), apesar de a maioria dos policiais assassinados serem negra (65,1%).

 

Fica claro que já passou da hora das corporações cortarem essa linha do  tabu em torno do racismo que os cercam e adotarem medidas para que debates internos sobre o assunto aconteçam ainda mais, com pessoas do meio. Seria interessante militantes da periferia entrarem em um debate sem conflitos, para que assim aconteça o fim desse problema. É necessário programar novas ideias, a questão da raça na formação dos policiais tem que começar a aparecer nos treinamentos e a diversidade tem que ser incorporada no comando das instituições.

 

Para o prefeito de Paraisópolis, Gilson Rodrigues, que comentou sobre a repressão na comunidade que lidera, um passo grande era existir uma nova polícia. “A melhor forma no quesito mudança é uma nova polícia, onde ela seja mais humana, identificada com a periferia e isso torna ela mais segura. Mesmo assim eu acho que nós não viveremos isso nos próximos anos, cada vez mais temos governos que nos lembram tempos de repressão, colocando o estado contra a sociedade” comentou. 

 

Só essa mensagem, de uma pessoa de dentro da comunidade mostra que não dá mais para que apenas homens brancos cheguem ao topo da carreira da Polícia Militar. Na capital algumas iniciativas (pequenas ainda) estão começando a surgir em todas as carreiras da polícia. Precisa haver uma postura que venha a defender as instituições e em engajar nas discussões, para que haja alterações nas práticas cotidianas da corporação.

  

Todos os dias essas condições favoráveis e desfavoráveis estão misturados no noticiário. Infelizmente, essas atitudes contribuem para o crescimento do estado de violência que o país vive. O pedido de socorro é reprimido pelos noticiários, por meio da publicação de matérias sobre crimes, cometidos pelos marginalizados, legitimam-se as barbaridades do Estado na tentativa de conter esse “mal”. 

 

É aí que entramos na conclusão de que quais medidas devem ser realizadas para esse retrocesso na criminalização, segundo o jornalista Leonardo Martins, São Paulo ainda segue em passos lentos, mas ele acredita em uma mudança. “O nosso estado é o que  está melhor pensando em segurança pública, mas   deveria  pensar mais.Devemos pensar na inteligência, não pode ser algo apenas ostensivo, de tiro, porrada e bomba. O crime organizado está enraizado no Brasil e a gente não resolve esse problema pensando apenas na pólvora” disse. 

  

Esse comentário só reforça o entendimento de que a exposição frequente à violência que milhões de brasileiros vivem, fazem com que todo esse tipo de espetacularização cegue a maioria das pessoas diante de um poder de repressão no qual a polícia militar ama realizar. Lembrando que antes de dizer isso, não podemos generalizar todos os PMs como vilões, muitos exercem a carreira com grande respeito e seguem a ideia do proteger e servir à risca.

 

Segundo o Sargento Lago a polícia militar de São Paulo é a melhor do país, não só por número de efetivos, mas também por quesitos treinamento e reiterou em dizer que as pessoas não conhecem os perigos que os agentes de segurança passam nas ruas. “Todo ser humano que é policial está nivelado como qualquer um, vejo sim alguns se sentirem superior só por estarem de farda, mesmo assim é uma minoria, em geral todos são muito bons” disse. 

 

Mesmo assim, para a superação do racismo por parte das polícias brasileiras exige uma urgente mudança de mentalidade, com debates abertos e francos, livres do dogmatismo e do corporativismo que reinam hoje. É preciso reprimir em massa, mas não de forma generalizada. Para isso, é preciso desumanizar o contingente a ser reprimido. Aliás, a desumanização é a forma mais legitimadora da violência.

 

É preciso apontar medidas ainda que sejam transitórias. Podemos ter tempos áureos para que propostas de mudanças um dia se concretizarem, é um tsunami que nós estamos vendo que está chegando e não realizamos nada para acabar com esses tempos “caóticos”. 

Fontes: 

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo

https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020

https://static.poder360.com.br/2018/06/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf

https://drive.google.com/file/d/0B2NgsJPC_67bRElxd1VYNElaQjQ/view

https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/senasp/anexos/pensando-a-seguranca-publica_vol-5.pdf

rodape_site.jpg
bottom of page